Entrevista a uma das queridas poetas de Poemas à Flor da
Pele, conosco desde o ORKUT, autora já de dois livros de poesia: Caminhante Prosas e Rimas ao vento, pela
Editora Somar e Navegações e Paragens, edição independente.
É ativa participante do grupo em eventos, seja em São
Paulo, Rio de Janeiro ou Porto Alegre. Divide-se em seu papel de Mãe, de sua
Gabriela, seu trabalho como médica psiquiatra e em escrever poesia. Nasceu em
São Paulo e mora em São José dos Campos/SP.
(POEMAS) 1 - Quando descobriu a tua veia poética?
Márcia - Na verdade, desde
que me conheço por gente, eu me reconheço poeta, mas aos nove anos de idade, lembro-me
bem que meu pai presenteou-me com livros de poesias, entre eles o "OU ISTO
OU AQUILO" de Cecília Meirelles e um caderninho onde eu poderia escrever o
que eu quisesse. E ali iniciou-se
uma história de amor
entre as letras
e eu.
(POEMAS) 2 – O que é para ti o ato de criar e em que
momentos a inspiração chega? O que na verdade te inspira?
Márcia - O ato de criar é reflexo da parte saudável de toda psiquê...
O ato de criar é libertador e projeta
inúmeras facetas de nosso inconsciente individual e coletivo naquilo que
se transforma em arte. Mas a arte
em si alem
de expressar o
lado sadio de
nossa mente, ela expressa
também uma busca
de unidade, de
integração psíquica ,
ou seja, ela
propicia também a
organização mental do
artista..
Para mim a
inspiração aparece em momentos de maior introspecção, não necessariamente em momentos
ruins, mas em momentos em que busco um contato maior com meu ser, um estado de necessária solidão para que eu
me reconheça indivíduo, de necessária comunicação do ser com seus estados da alma através do
verso. O poema é quase um sexto sentido que
o ser humano possui: através dele fluem
sensações e percepções acerca do mundo em que vivemos, como um sentido a
mais, que possibilita ao poeta enxergar o mundo de forma muito particular.
O que mais me
inspiram são temas sociais e a humanidade
no que ela tem de mais dolorosa, bela, e coletiva: as grandes dores humanas como a
falta, a fome, o cerceamento da liberdade, a paixão, a solidão, a exclusão.
Não me interessa falar diretamente de
mim pessoa, mas
através dos meus olhos
de poeta, falar sobre
o que é
comum à todos. O que me inspira são
as dores universais.
(POEMAS) 3 -
Quais, entre tuas obras, os três poemas que escrevestes e que te deixam
realizada por ter escrito. Coloque-os aqui para nós.
Márcia - Para mim há poemas
que eu reconheço que falam dos sentimentos humanos aos quais me referi na pergunta
anterior, sentimentos que são coletivos.
Então vou citar três destes para exemplificar:
O HOMEM E O MAR
Havia um vasto mar
desses a se perder
de vista
e sobre ele um barco
e dentro dele
um homem.
Um homem
solitário,
no silêncio cortante
da manhã,
sem horizonte a se
avistar,
sem peixes a
pescar:
apenas homem,
barco, solidão...
Dentro do homem
seres abissais,
desses encontrados
nas profundezas,
do imaginário oceânico
decomposto,
como numa fábula
de esponjas e líquens
que assola todo
homem só.
E em sua longa espera
espera de perdão, espera da salvação
na precária esperança
que é viver,
havia ali um homem
feito de ausências,
medo, fome e solidão.
E seria o mar azul dos sonhos dos poetas
não fossem a
memória cinza e o desejo rubro,
e o desespero pálido,
nas curvas do tempo,
arquitetando enigmas
e rugas e sulcos
na face do homem solitário.
Uma face de presságios e miragens
no embate entre o ceticismo
e a fé,
nos arremessos do
barco contra rochas,
e nas geográficas formas de desespero
das ondas e cheias
da maré.
E a noite seria ainda
longa, triste e incerta
e o homem
descrente e exíguo
não fosse suas mãos fechar-se em prece,
pois a solidão não
cala o homem,
e a alma anônima clareia
o dia
nas sendas do destino
que o consome,
no vasto mar a se perder de vista.
(Marcia Tigani - setembro 2012)
imagem br.artmajeur.com - lavadeiras no rio- Google
COMO UM RIO
Um tempo só de água,
que deságua
no curso lento da
história...
Um leito d'água doce,
areia e pedra.
num vale qualquer,
esquecido na memória...
Inscrito, o tempo
volta à superfície,
do rio das vertigens
e amores...
Transbordam pelas margens
realidade e sonho
e inundam um velho
coração...
Ah! Rio das causas profanas, das mães-joanas,
das ninfas e mulheres,
com suas roupas e bacias...
Lavadeiras de peles
curtidas ao sol, mãos calejadas
causas perdidas...
E um
rio que lava toda
a dor....
Um menino chora é
apenas um menino ainda
e terá uma vida inteira
a chorar...
O povo ribeirinho
desconhece verso e rima
mas faz poesia ao
luar...
Tempo das mariposas,
das cigarras, tempo quente
de só água doce a
refrescar...
Lá fora um rio fecunda
a terra seca
aqui dentro uma angústia
a apertar...
Um pássaro colorido,
um remanso, água pura, sabiá...
A esperança é verde,
o amor é azul, o desejo rubro...
E o rio transparente
sussurrando: passará, passará...
(Marcia Tigani Abril 2013)
ROMARIA
Pelo asfalto interminável e aquecido
sob o implacável Sol do meio-dia
seguem pés e cruzes de madeira
na solidão dos fiéis em romaria.
O vento que traz a fuligem e o pó,
mistura-se ao suor frio e encardido.
Há sorte esperada em todo nó
dos terços de cada olhar perdido.
O destino é apenas
a incerteza
nessas mãos enlaçadas a rezar,
e a imagem
carregada de beleza
é a prece implícita nesse altar.
Que destino é esse almejado,
se no percurso da longa travessia
a morte espreita a cada um
dos devotos da santa, em romaria?
Haverá esperança em cada pedra,
se a vida é andar sem paradeiro
sonhando com o pão e a água doce
e ter a terra
própria como esteio?
As cantigas evocam Aparecida,
senhora que habita o Santuário,
no coração de cada alma bendita
e nas orações próprias de sacrário.
Há uma mãe que habita todo homem
que protege a prole e abençoa a lida,
longe é lugar que não existe
aos que tem fé na senhora Aparecida.
E seguem os pés feridos, em procissão
carregando a cruz que nos foi dada:
a vida é só uma longa romaria
pelas veredas dessa imensa estrada.
Marcia Tigani 12/10/2011
(POEMAS) 4 –
Quais os poetas e obras que lestes e que são tua referência?
Márcia - Minhas referências principais porque tocam no fundo da minha alma são Cecília Meirelles e Carlos Drummond de Andrade. Mas identifico-me muito com os poemas de
Hilda Hilst, Fernando Pessoa, Sophia de Mello Breyner Andersen e Mia Couto.
(POEMAS) 5 –
Escolha um poema que admiras destes autores e coloque aqui para que possamos
ler.
1-Reinvenção
A vida só é possível reinventada.
Anda o sol pelas campinas e passeia a mão dourada pelas
águas, pelas folhas. . .
Ah! Tudo bolhas que vêm de fundas piscinas de
ilusionismo... – mais nada.
Mas a vida, a vida, a vida, a vida só é possível
reinventada.
Vem a lua, vem, retira as algemas dos meus braços.
Projeto-me por espaços cheios da tua Figura.
Tudo mentira! Mentira da lua, na noite escura.
Não te encontro, não te alcança...
Só - no tempo equilibrada, desprendo-me do balanço que
além do tempo me leva.
Só - nas trevas fico: recebida e dada.
Porque a vida, a vida, a vida, a vida só é possível
reinventada.
(Cecília Meireles)
2-A Máquina do Mundo
E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco
se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas
lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,
a máquina do mundo se entreabriu
para quem de rompê-la já se esquivava
e só de tê-lo pensado se carpia.
Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável
pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar
toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.
Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de tê-los usado os já perdera
e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,
convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,
assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco o simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,
a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
“O que procuraste em ti ou fora de
teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,
olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,
essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo
revelou-se ante a pesquisa ardente
em que te consumiste… vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”
As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge
distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos
e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber
no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar
na estranha ordem geométrica de tudo,
e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que tantos
monumentos erguidos à verdade;
e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,
tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.
Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,
a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;
como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face
que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,
passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes
em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,
baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.
A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,
se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mão pensas.
(Carlos Drummond
de Andrade)
3-Che Guevara
Contra ti se ergueu a prudência dos inteligentes e o
arrojo
[dos patetas
A indecisão dos complicados e o primarismo
Daqueles que confundem revolução com desforra
De pôster em pôster a tua imagem paira na sociedade de
[consumo
Como o Cristo em sangue paira no alheamento ordenado das
[igrejas
Porém
Em frente do teu rosto
Medita o adolescente à noite no seu quarto
Quando procura emergir de um mundo que apodrece
(Sophia de Mello Breyner Andersen, in "O Nome das
Coisas")
4-Identidade
Preciso ser um outro
para ser eu mesmo
Sou grão de rocha
Sou o vento que a desgasta
Sou pólen sem inseto
Sou areia sustentando
o sexo das árvores
Existo onde me desconheço
aguardando pelo meu passado
ansiando a esperança do futuro
No mundo que combato morro
no mundo por que luto nasço.
Mia Couto, in "Raiz de Orvalho e Outros Poemas"
5-Poema em linha reta
(Álvaro de Campos)
[538]
Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas
vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar
banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das
etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo
ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de
fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido
emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas
ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na
vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi
vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
6-Árias Pequenas.
Para Bandolim (Hilda Hilst)
Antes que o mundo acabe, Túlio,
Deita-te e prova
Esse milagre do gosto
Que se fez na minha boca
Enquanto o mundo grita
Belicoso. E ao meu lado
Te fazes árabe, me faço israelita
E nos cobrimos de beijos
E de flores
Antes que o mundo se acabe
Antes que acabe em nós
Nosso desejo.
(POEMAS) 6– O que você acha dessa criação desenfreada no
mundo virtual?
Márcia - A internet é o local propicio à produção e
divulgação literária , fomenta, estimula,
espalha a poesia freneticamente e facilita a criação literária. Mas ao mesmo
tempo é povoada de
ilusões do que é
ser poeta e do
que é
ser reconhecido pelo público: premiações
"compradas" pelo próprio
autor, que são
comercializadas na internet ,
comendas sem qualquer valor literário,
apenas estimulando o lado narcísico
do premiado, festivais
e concursos de qualidade
duvidosa e principalmente, a
mercantilização da poesia,
faz com que
a net perca muito
de sua importância para mim
enquanto poeta.
(POEMAS) 7 – O que
você diria para um poeta que está iniciando sua vida literária?
Márcia - Busque ler
muito. E não tenha
vergonha de expor-se.
(POEMAS) 8 – Fale de seus livros “Caminhante” e o mais
recente “Navegações e Paragens” que sensações teve ao vê-los prontos?
Márcia - "Caminhante prosas e rimas ao vento”, editado pela Editora Somar, e
lançado na Bienal Internacional do livro de São Paulo em 2012 e na Feira do Livro de Porto Alegre no mesmo
ano, foi meu livro de estreia, onde procurei reunir alguns poemas e prosas sobre temas existenciais, divididos em tópicos que se basearam em temas comuns aos diversos
poemas Foi uma experiência marcante, pois me introduziu no mundo editorial, até
então desconhecido para mim. pois
participei ativamente da
confecção e revisão
do livro junto
com as editoras
Soninha Porto e Márcia
Peçanha Martins, num
processo interativo com
as mesmas , que me encantou!.Ver o livro nascer, foi experimentar
de certa forma um sentimento maternal.
E esse
livro também me
estimulou a produzir
outro, o "Navegações e paragens" lançado
pela editora Tachion
na Bienal Internacional do
livro de São
Paulo em 2014. Este último livro trata
do universo das águas, e meus poemas
transitaram pelos temas líquidos, desde a água em seus diversos estados até
as metáforas que pude construir sobre o tema.
(POEMAS) 9 – Um
livro é para toda vida e revelam muito de nossas emoções de viver, você
concorda com isso? Que emoções você viveu ao criar seus livros?
Márcia - Sim, concordo plenamente!
Como disse anteriormente, ver um livro nascer é sem dúvida experimentar uma espécie
de sentimento maternal, que se mistura
às emoções muito particulares de amor, entrega e carinho literário. Ser lido
não tem preço!
Obrigada querida Poeta!
Soninha Porto
heisoninha@gmail.com
7 Comentários
Parabéns pela iniciativa.Escolha perfeita! Bela entrevista!
ResponderExcluirSucesso!
Beijos!
Entrevista transparente como a alma de um poeta. Felicidades!
ResponderExcluirParabéns Poemas, pela ótima entrevista e divulgação de poetas talentosos como a Mácia. E Márcia parabéns pela sua pessoa e por sua maravilhosa obra, foi bom conhecer um pouco mais de "você".
ResponderExcluirGrata Betânia Uchôa ,Adroaldo Borba e Clau Poeta! pelas palavras e leitura! Forte abraço!
ResponderExcluirGosto muito dos seus textos e do seu envolvimento com o bem!
ResponderExcluirGrande abraço, Marcinha! Ronaldo Rhusso.
ResponderExcluirGrande abraço, Marcinha! Ronaldo Rhusso.
ResponderExcluirPOEMEM-SE SEMPRE!
SEJAM BEM-VINDOS!