Era um dia de
infância sem tempo marcado ou palavra empenhada. Um dia sem sal, desses que o
destino - cansado de guerra - concede uma trégua aos viventes. Era o dia dos
mortos onde os vivos mais velhos cerravam os cenhos fingidos. Nem música ou
conversa fiada ou ambulante gritando na rua; dia de oração e lembrança,
penitência e perdão. Um dia de cão para os vivos crianças que, por vezes,
esquecendo a razão, arriscavam um sorriso ou uma cantoria qualquer. Não havia
alegria tampouco tristeza, apenas inércia e um irritante descaso com a vida.
Meu pai
madrugava e, por conta de suas crenças, assistia a missa das seis no
Educandário Coração de Maria. Nunca o vimos sair, assim mesmo sabíamos que
estava lá. Era certo como o trem Minuano que toda quinta chegava de Bagé. Adiante,
compreendi que isso era tradição, algo que nascemos sabendo, atitudes que
incorporamos a alegria da vida e um dia encontramos na gaveta das lembranças
perdidas.
Sem pressa,
vivos de todas as idades seguiam na direção da rua Dois de Novembro, destino
dos caminhantes silentes e sede de todos os mortos. Duas quadras em que, até
hoje, separadas pelos trilhos da 1º de Maio, abrigam dois cemitérios. De um
lado os mortos católicos, do outro os protestantes. Á noite, o “dos pobres” como
era chamado o dos padres, servia aos batuqueiros com seus despachos e capas
vermelhas.
Elisa se fora
naquele inverno. Com seus trinta e poucos anos, marido, dois filhos e uma
válvula mitral em seu peito. Todos a adoravam! Pequenina e sem papas na língua,
frágil como uma pétala, resistente feito esperança de pobre. Foi nossa primeira
perda, minha primeira saudade.
Não fugindo a
regra, alguém trabalhava e ganhava o dia feriado. Pão dormido para os
encarregados da última morada, pão doce para os vendedores de flores e velas,
pão de milho para os vivos padres que, por força das contingências, rezavam
infinitos rosários mantendo um semblante grave e pesaroso.
Nossa casa era
humilde, um chalé de madeira com paredes amarelas, janelas vermelhas e um
pequeno “halzinho”, forma como minha mãe se referia ao pequeno saguão que
antecedia a porta principal. Com muro baixo e um portão também de madeira, o
pátio frontal escoava-se por um corredor a direita da entrada. Caminho que, a
sombra de dois enormes abacateiros, conduzia a vista do quarador de roupas, do
galpão e levava a porta dos fundos. Ainda, no vasto terreno – antiga quadra de
basquete – tinha um galinheiro, com um galo e quatro galinhas ao lado de uma
gaiola com um casal de garnisés de minha propriedade. Tudo em frente ao galpão
e atrás do novo banheiro de alvenaria, substituto da casinha e construído fora
da casa prenunciando que um dia teríamos uma nova cozinha e, porque não, até
outros quartos.
Ciprestes
concediam o tom às alamedas sombrias. Isso, aos olhos dos vivos crianças que,
sem entender muito bem, liam e reliam epitáfios por tempo em que os vivos
culpados limpavam e enfeitavam as covas dos mortos parentes. Muitos choravam, outros
concediam olhares e mais olhares. Alguns, pelos corredores, interrompiam a
caminhada e balançavam a cabeça em negativa. Eloá ,
amiga de minha mãe, dizia que: “eram gente que não aceitava a morte”.
Dacila não quis
ser normalista, preferiu cursar o científico no Lemos Júnior e, depois, prestar
vestibular para Engenharia Industrial. Naquele tempo, o concurso era escrito e
a faculdade contava com grande prestígio. Se não me trai a memória, minha irmã
foi a primeira ou segunda mulher na cidade a ingressar neste curso. Havia ainda
Rosina, minha irmã do meio e rainha das estripulias. Não houve semana dos seus
treze anos que não voltasse com queixas ou que minha mãe não fosse chamada à
escola para explicações.
Na feira,
formada de improviso por ambulantes, havia de tudo. Velas de todas as cores e
dias, flores, rosários, bíblias, santos de barro e até pretinho velho de
cachimbo. Ali se comentavam as virtudes e os pecados e, enfim, o quanto era preciso
nesta vida, até galgar um lugar no céu.
- Lugar dos
mortos ricos. Dizia tia Moça, lembrando as gordas contribuições que garantiam
um lugar de destaque nas missas, no campo santo e por conseqüência no esplendor
celeste.
- Pobre chegar
ao céu? Só santo. Encerrava irrefutável.
Santa Rosa de
Lima contribuía com os negócios ventando o que não podia e, pior, nem era seu
dia. E que dia – esse dos mortos! Por vezes tínhamos a impressão que
sucumbiríamos também; ou a monotonia ou aos ventos antigos.
1 Comentários
Mas que vontade de saber mais Marco! Que imagens lindas, poéticas, perfeitas de quem abriu a gaveta da memória, temos aqui um excelente escritor que está passando por cima das suas cantorias e escrevendo textos perfeitos. Tem gosto de quero mais amigo!
ResponderExcluirPOEMEM-SE SEMPRE!
SEJAM BEM-VINDOS!