Observei seu
sono, fechei as venezianas com cuidado e - pé por pé - retirei-me do quarto.
Não mensurava seu cansaço, tampouco onde teria andado ou o que provocara
tamanha fadiga. Seu rosto expressava muitas luas de vigília e, agitado,
sonhava.
Findava a
tarde e o lusco-fusco anunciava estrelas. Do avarandado, era possível perceber
o progressivo e paciente movimento da maré. Na praia, um pescador tardio
recolhia seus apetrechos e a imagem revelava a estação; o outono é sempre grave
no sul.
Voltei a casa
e preparei a noite. Supri de lenha o velho fogão de ferro e pensei um trago,
mas logo descartei a idéia. Não tinha tempo para outra coisa a não ser meu
velho amigo que dormia. Tremeluzia a chama e as lembranças ardiam; lá fora o
nordeste rebojava e, entrementes, devolvia alguma fumaça ao ambiente. Por uma
fresta respirei um pouco do passado, lembrei-me dos riscos e aventuras que
enfrentei na vida e dos tantos e tantos trabalhos que lhe dera. Perdi na conta
as vezes que chorei e lhe apelei afagos, ou outras tantas que lhe neguei
vitórias ou, ainda, outras que questionei seu interesse. A consciência é um
vinho amargo.
Perdido em
mim venci a madrugada, abri meu coração e cantei a velha canção do caminho. Lembrei-me
de todas as esquinas, todos os amores e todas as loucuras. Clandestino, cruzei
fronteiras e portais, vivi e renasci sem tréguas, pedi perdão e me perdoei. Era
novamente um menino e podia rir sem motivo, brincar sem receio.
As gaivotas
anunciavam a manhã, despertava a natureza sobre um mar de azul intenso.
Escutava ao longe a ladainha dos pescadores e suas mulheres. Simplicidade
explícita, destino verdadeiro; o pão de cada dia. A estrela da manhã se
despedia, enquanto o cotidiano se estabelecia íntegro. Tudo era claro e
cristalino.
O velho amigo
já partira e ainda muito tinha eu por viver.
Marco Araujo
1 Comentários
Bárbaro meu amigo! Dá um prazer imenso te ler.
ResponderExcluirPOEMEM-SE SEMPRE!
SEJAM BEM-VINDOS!